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Projeto FiSciPE (IF/00519/2013), 2014-2018

Cientistas de Campo no “Cenário Luso-Tropical”:
Conhecimento, Ideologia e Governo no Império Português Tardio

Palavras-chave: Cientistas de campo; conhecimento; ideologia; governo; Império colonial Português tardio.

Este projeto aborda a questão do impacto da atividade dos cientistas de campo na ideologia e no governo coloniais, no império português tardio. A minha hipótese é que sendo o Estado Novo (1933-1974) uma ditadura imperialista era extremamente difícil que os cientistas nas colónias desenvolvessem pesquisa autónoma que desafiasse as fundações do domínio colonial; não obstante os cientistas – independentemente das suas próprias convições e constrangimentos – desenvolvem pensamento crítico, respondem a princípios racionalistas, universalistas e éticos. Por isso, é necessário explorar a noção de autonomia relativa do campo científico e compreender as estratégias individuais dos cientistas. Porque os cientistas de campo estavam efetivamente no terreno, produziam conhecimento localmente situado e guardavam registos sistemáticos (das suas observações, colheitas, inquirições), são cruciais para compreender o funcionamento do império. Porque circulavam entre a metrópole e as colónias e entre diferentes colónias (em África, Índia, Macau e Timor) conseguiam fazer comparações e ter uma visão de conjunto do império.

Este projeto está ancorado na interseção entre a História do Imperialismo e a História Social da Ciência, propõe-se combinar metodologias da História e de outras Ciências Sociais, e usar fundos de arquivo institucionais, fontes orais e espólios pessoais de cientistas.


Estado da Arte

Na sequência das independências das colónias asiáticas e africanas criticou-se a utilização da ciência para fins ideológicos, de controlo político e de exploração dos recursos naturais e dos povos colonizados em benefício dos interesses metropolitanos. A análise histórica expandiu-se gradualmente aos contextos locais, à agência local e às influências recíprocas entre a ciência europeia e o conhecimento ‘indígena’. Nos últimos anos assistiu-se ao questionamento das visões mais simplistas e redutoras da ciência ao serviço do império e como agente do imperialismo cultural (Schiebinger, 2005: 54). Sem pôr em causa que o conhecimento científico foi mobilizado pelo Estado colonial, nem a colaboração de cientistas no projeto colonial, pesquisas mais recentes apontam para um entendimento mais complexo desta relação (e.g.: Beinart et al., 2009; Hodge, 2007; Tilley, 2011).

Uma história imbricada da Ciência e do Colonialismo português tardio está ainda por fazer. Há trabalhos centrados na antropologia (Pereira, 2005; Roque, 2010), na cartografia e na geografia física (Santos/Lobato, 2006), na engenharia (Diogo, 2009) e na medicina (Bastos, 2007; Amaral, 2008), prevalecendo as abordagens circunscritas ao século XIX. Saraiva (2009), de forma inovadora, explorou as conexões entre tecnociência e a colonização de Moçambique. Mas ainda ninguém se debruçou sobre as ciências de campo (Kohler e Kuklick, 1996) nas colónias portuguesas como uma situação privilegiada para compreender o funcionamento do império, usando abordagens centradas nos atores e práticas científicas, através da historia oral (Chadarevian, 1997; Doel, 2003) e da biografia (Levi, 1989).

As entrevistas que conduzi com antigos investigadores da Junta de Investigações do Ultramar, assim como a pesquisa realizada em fundos de arquivo, demonstram que não foi só os poderes político e económico que determinaram o rumo da investigação científica nas colónias; mas os próprios cientistas indicaram prioridades, investimentos e medidas específicas nesse particular (Castelo, 2012). Os investigadores desenvolveram, em alguns casos, um subtexto de crítica, dissensão e debate, que, por vezes, chegou mesmo a desafiar os alicerces do domínio colonial em África (como Helen Tilley aponta na sua análise sobre o African Research Survey. 2003: 109-110). Proponho olhar para os pesquisadores que fizeram trabalho de campo em África como cientistas nas colónias e não como cientistas coloniais (seguindo a proposta de Beinart et al., 2009:424). Há evidência empírica de que o conhecimento localmente baseado produzido no periodo colonial estava mais profundamente enraizado no terreno do que a investigação para o desenvolvimento e a cooperação do período pós-colonial, essencialmente conhecimento portátil (Mehos e Moon, 2011).

Este projeto estudará a interação entre ciência, ideologia e processos de governo do império, quando o movimento anticolonial acossava de forma crescente os impérios, que, por sua vez, se tentavam legitimar através da ideia de desenvolvimento (Cooper/Packard, 1997: 7). Nas Áfricas britânica e francesa, o processo de modernização do colonialismo ocorreu imediatamente depois da Segunda Guerra Mundial (Cooper, 2004). Os governos coloniais encaravam o desenvolvimento como algo que podia revigorar o seu domínio sobre as colónias; no entanto, essa ideia tornar-se-ia central no processo pelo qual as elites coloniais se convenceram que podiam abdicar das colónias (Cooper, 1997:64).

Portugal também ensaiou políticas desenvolvimentistas nos seus territórios coloniais, fazendo um uso da pesquisa científica, mesmo se o investimento público fosse bem menor e as prioridades distintas do que aconteceu noutros impérios coloniais europeus (infraestruturas e povoamento branco, em vez de investimentos sociais). Contra-corrente, dos anos 60 para a frente, Portugal continuou a promover a ideia de um desenvolvimento luso-tropical como uma alternativa à descolonização (Castelo, 2014). A singularidade do caso português parece residir não só na cronologia e no modelo de desenvolvimento colonial, mas na resistência ao movimento de emancipação, através da adoção do luso-tropicalismo como o alibi do regime para a permanência de Portugal em África (Castelo, 1999).

Tendo em conta a noção da autonomia relativa do campo científico (Bourdieu, 1976), pretendo analisar as negociações e tensões entre os cientistas de campo e o poder político. Estou igualmente interessada em compreender: o impacto dos cientistas de campo na definição das ideias e das políticas do governo português; e as suas repercussões nas sociedades coloniais. Conseguiu gerar ou influenciar mudanças sociais e políticas no império? (MacLeod, 2000:7)

Plano e Métodos

A questão nuclear deste projeto é a interação entre cientistas de campo e império colonial português tardio. Depois de traçar a evolução da política científica do Estado Novo para as colónias entre o pós Segunda Guerra Mundial e as independências, irei caracterizar os cientistas de campo nas colónias, focando-me nos engenheiros agrónomos, ecólogos e cientistas sociais. Pretendo ser capaz de caracterizar demográfica e socialmente os cientistas de campo no terreno colonial (naturalidade, origem social, habilitações literárias, carreira científica, filiação institucional, redes e produção científica), as suas motivações, objetivos, e visões do mundo. Outro foco de inquérito relaciona-se com os propósitos do Estado Novo ao mobilizar as ciências de campo e perceber em que medida o conhecimento produzido no contexto colonial foi efetivamente usado para fins de propaganda, política externa e administração colonial. Finalmente pretendo compreender o papel dos investigadores na (re)definição das ideias e práticas políticas, e o impacto real dos conhecimento localmente situado nas sociedades coloniais.

O primeiro desafio que o projeto enfrenta resulta da sua novidade entre a historiografia tanto do imperialismo português como da ciência portuguesa. De facto, há uma falta de estudos sobre os envolvimentos entre a ciência, a ideologia e o governo do império português tardio. O segundo desafio, ao qual regressarei quando discutir a metodologia, é cruzar fontes escritas (incluindo fontes de arquivo inéditas) com fontes orais. O último desafio será desenvolver uma análise capaz de enriquecer a história do império e da ciência durante a era da descolonização, permitindo comparações entre os casos britânico e francês, muito mais estudados, e o caso português.

Em termos metodológicos, este projeto situa-se na interseção da História do Imperialismo com a História Social da Ciência, combinando diferentes contribuições da História e de outras Ciências Sociais, e abordagens macro e micro. Metodologias complementares de coleta de dados e análise serão usadas para responder aos temas e questões do projeto: o método histórico; a prosopografia; estudos de caso; biografias; e entrevistas semi-estruturadas sobre história de vida com incidência na atividade profissional.

1. Evidência empírica será recolhida em fontes primárias impressas e em arquivos (o quase inexplorado Arquivo do IICT, Arquivo Histórico Ultramarino, Arquivo Histórico Diplomático e Arquivo Oliveira Salazar, e espólios pessoais de cientistas). Nesses documentos procurar-se-á descortinar a política científica para as colónias, mas também a forma como o Estado Novo mobilizou e usou a ciência de campo para fins de propaganda, política externa e governo do império. Discursos de cientistas e de politicos sobre ‘ocupação científica colonial’ (destacando acordos e tensões) serão reunidos e examinados. Dados detalhados sobre instituições de pesquisa coloniais e os seus outputs serão coligidos em processos e relatórios oficiais, publicações periódicas científicas e outras. O impacto da ciência de campo nos discusos e práticas políticas será explicado à luz das repercussões nas condições de vida dos colonizados.

2. Proponho-me reunir informação biográfica e curricular relativa a uma amostra representativa dos cientistas de campo que trabalharam nas colónias no período em estudo, com vista à determinação do perfil sociológico destes actores e à reconstituição das suas redes formais e informais.

3. Para uma análise mais aprofundada de grupos de pesquisa e missões científicas que conduziram trabalho de campo nas colónias, através de uma abordagem qualititiva, tenciono debruçar-me sobre (até) quatro estudos de caso focando tanto exemplos paradimáticos como atípicos.

4. Entrevistas em profundidade semi-estruturadas com 20 antigos cientistas serão conduzidas e registadas sobre as suas histórias de vida e atividade profissional no terreno colonial. Far-se-á, de seguida, a análise de conteúdo desses materiais. Considero que as entrevistas me permitirão aceder a informação que os documentos escritos não revelam; além disso serão úteis para a recolha de dados sobre as origens sociais dos cientistas, comparar diferentes histórias de vida, práticas e ideias entre um conjunto de disciplinas diferentes. As histórias orais fornecerão narrativas individuais bem como um acesso à forma como os cientistas percecionavam o seu papel; as motivações e objetivos qe guiaram as suas carreiras nas colónias; as suas posições políticas e ideológicas, nomeadamente em relação ao regime e à guerra colonial; as suas perceções dos territórios em que trabalhavam, as populações que estudavam ou com as quais contactavam durante o trabalho de campo, e o conhecimento vernacular: as redes formais e informais em que se inseriam. Tenciono também escrever biografias de cientistas já falecidos que dirigiram missões de estudo ou instituições científicas nas colónias.

Resultados Esperados

Entre os resultados esperados o mais importante é introduzir uma análise complexa e abrangente da interação entre os cientistas de campo e o império colonial português tardio num quadro comparativo e global, levando em conta os outros imperialismos europeus (muito mais estudados) e as organizações internacionais que emergiram no pós Segunda Guerra Mundial. Também fornecerá uma visão de conjunto da atividade tanto de cientistas naturais como sociais no e para o império (como sugerido por Worboys, 2011:325).

Além disso, introduz o estudo das ciências sociais e a metodologia da história oral nas práticas analíticas e metodológicas do CIUHCT, produz fontes orais que serão disponibiizadas localmente (na biblioteca da FC-ULisboa) e na internet (no repositório digital da ULisboa), com o consentimento infomado dos entrevistados; e pretende localizar espólios pessoais de cientistas e contribuir para o seu tratamento arquivístico e disponbilização.

Em termos práticos os resultados esperados são um balanço atualizado da política científica do Estado português para as colónias no período colonial tardio, numa perspetiva internacional; um estudo sociográfico dos cientistas de campo que trabalharam nas colónias portuguesas na era da descolonização; um conjunto de estudos de caso de grupos de estudo e missões científicas paradigmáticos ou atípicos (p.e.: a Missão de Inquéritos Agrícolas de Angola, Missão de Extensão Rural de Angola, o Grupo de Missões de Investigação do vale do Zambeze ou a Missão de Geografia Física e Humana do Ultramar Português); biografias de alguns dos mais destacados cientistas de campo que trabalharam no império português tardio; uma coleção de entrevistas (audio ou vídeo e respetivas transcrições) sobre as histórias de vida de cientistas de campo com incidência na sua atividade nas colónias.

Este projeto de investigação deverá ter impacto não só na historiografia portuguesa, mas especialmente na produção científica internacional tanto sobre a História da Ciência como sobre a História do Imperialismo, através de comunicações apresentadas a conferências internacionais e artigos publicados em jornais com arbitragem científica. Terá igualmente impacto na estratégia interdisciplinar da FC-ULisboa e na atividade e internacionalização do CIUHCT.

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